domingo, 23 de dezembro de 2007

Pensata: O aniversário do Justo

Está chegando o Natal. E, a cada ano que passa, os que já o viram chegar outras vezes acham-no bastante mudado. E se perguntam, como Machado de Assis: mudaria o Natal, ou mudei eu?
Machado de Assis sabia que ambos tinham mudado. A dificuldade está em extrair as conseqüências da enorme diferença nos ritmos da mudança. Enquanto o nosso genial escritor mudava na escala de uns míseros 70 anos, na escala de uma vida humana, o Natal, a celebração do nascimento de Cristo, vem se transformando ao longo de dois milênios.
Inicialmente, a celebração passou a ser, como era inevitável, um elemento que afirmava a identidade própria de um grupo. Entrou em cena um punhado de dissidentes judeus, que ansiavam por mostrar uma grande novidade religiosa: os Evangelhos.
Embora a fixação da data de nascimento do Cristo seja bastante discutível, a celebração prevaleceu. Não importava que a data fosse incerta. O que era essencial era que o aniversariante não fosse esquecido.
Um Deus nascido numa manjedoura e morto pregado na cruz era uma figura que comovia muito e dava muito o que pensar. Cresceu o número de pessoas que, mesmo quando não reconheciam nele o filho de Deus, reverenciavam-no como um justo.
Organizados na forma de uma assembléia (ecclesia), os discípulos do Cristo, desconfiados, tentaram evitar os males da propriedade privada, adotando - voluntariamente - a propriedade coletiva. Mas o crescimento e o fortalecimento da ecclesia obrigaram o movimento popular dos cristãos a recuar.
Durante a Idade Média, a fonte do poder era a propriedade da terra, e a Igreja se tornou uma grande proprietária de terra. Fazia parte dos beneficiários do sistema feudal.
Depois, veio a espertíssima classe dos burgueses e submeteu toda a sociedade à lógica do mercado. Tudo vira mercadoria, tudo se vende e se compra.
O Natal se transformou e continua se transformando. Nem sempre para o bem, ouso dizer.
Não me identifico com nenhuma religião, não sou cristão, mas o fato de ser um observador externo dos fenômenos religiosos não me impede de acompanhar, com simpatias e antipatias, os avanços e recuos dos cristãos.
Às vezes, me impaciento um pouco. Seria ridículo fazer campanha contra Papai Noel. Ele não tem culpa pelo que fazem com sua figura pitoresca, com seu carro puxado por renas voadoras, com o saco cheio de presentes para as crianças boazinhas. Não tem culpa pela risada que lhe foi atribuída, aquele som horrível: Hô-hô-hô.
Talvez, porém, seja menos inocente quando se associa à febre consumista da passagem do ano. Respeito o entusiasmo do Bom Velhinho pelos panetones e rabanadas. Porém, acho estranho vê-lo caminhar à frente de vitrinas hiperiluminadas, fazendo propaganda de carros, geladeiras e apartamentos, discutindo a cotação do dólar. Nem o sistema de pagamentos em módicas prestações vai me convencer a aceitar os truques da modernidade.
Nunca entendi qual é o vínculo desse ancião robusto com o Natal. Já tentaram me explicar que o veterano usuário do carro das renas é, de fato, um certo São Nicolaus, do qual pouco se sabe. Por isso, muitos norte-americanos e ingleses não falam em Papai Noel, como nós. Falam em Santaclaus.
Acho, sinceramente, que nenhum Santaclaus, cantando Jingle bell, vai convencer a humanidade de que as atuais formas de celebração do nascimento de Cristo incorporam e absorvem a festa de Papai Noel. E acho, também, que os festejos natalinos - expressões legítimas da alegria do povo - não têm (nem devem ter) a pretensão de absorver e incorporar a sua dinâmica peculiar a celebração do aniversário de Jesus.
No início da nova era, os escravos fizeram diversas tentativas revolucionárias de derrubar o Império Romano (lembremos de Espártaco). Os judeus também se insurgiram contra Roma, em Masada. O fracasso desses levantes sugere que o caminho revolucionário, naquelas condições, era inviável.
Cristo mobilizou pessoas que, na maioria, eram pobres. Não podendo acabar com a pobreza, encaminhou um programa de valorização da dignidade e de conquista da auto-estima. O movimento de massas desencadeado pelos cristãos era uma reação de sincero nojo contra a corrupção crescente, uma enérgica revolta contra o cinismo demoníaco das classes dominantes.
Como descrente respeitoso que sou - marxista convicto, irrecuperável - quero apenas registrar minha expectativa de que o festival consumista em torno de Santaclaus não atrapalhe a celebração do aniversário do Justo.

Pensata: O aniversário do Justo
Leandro Konder - Filósofo
Extraído do Jornal do Brasil de 22 de Dezembro de 2007