segunda-feira, 10 de maio de 2010

Sobre prostitutos e prostituições

Guapimirim, 2008.

Fazia um enorme calor na quarta-feira, enquanto vagava por Guapimirim e me surpreendia com cada armazém, com as casas de material de construção, com a única praça que expunha um papai Noel mecânico e epilético para as crianças que passavam sem admirá-lo.
A fim de gastar o tempo e almoço que ainda me incomodava, entrei numa barbearia, daquelas tradicionais, que se vê no subúrbio ou no interior, e esperei para ser atendido. Atento, ouvi uma conversa sobre a política local e me interessei. Um homem que cortava os cabelos, ao sentar já foi dizendo que seu cabelo era "ruim" num tom de brincadeira e o barbeiro, que lhe conhecia bem, puxou logo assunto sobre as eleições municipais do ano que vem.
O homem que desbastava sua já rala cabeleira desandou a falar mal do prefeito e de seus assessores, que já estava desiludido com política e que havia cansado de tentar disputar uma vaga para vereador desta pequena cidade sem alcançar sucesso. Até tudo indo. Até que, estimulado pelo responsável por sua estética capilar, começou a denunciar, ainda que sem querer, a podridão ética que nos encontramos. Disse que o salário de um vereador em Guapimirim é muito bom R$ 2.400,00, sem contar os adicionais - que confesso não ter entendido se estão dentro ou fora da legalidade - e que era um absurdo um vereador como fulano ter passado dois mandatos (ou seja 8 anos) e "não ter feito um patrimônio para sua família"!? Sobre a conivência concordata do seu interlocutor barbeiro, estava deflagrado ali, aos pés do pico do dedo de deus, a total ausência de ética com a coisa pública que tanto nos acostumamos a ouvir. Dois homens simples, que julgam ser pouco mais de dois mil reais um bom salário, exortando o desvio de dinheiro público para fins pessoais, valorizando vereadores que enriqueceram em um mandato e construíram imóveis e negócios que os seus salários não construiriam nunca. Engraçado como ninguém quer ser vereador para cuidar do bem coletivo, qual será a razão que nos leva a colocar o dinheiro acima do bem estar social?
Brasília. Eis uma das múltiplas explicações. O que assistimos no Senado da República é de uma melancolia atroz. Esta semana Renan Calheiros foi mais uma vez inocentado, mas não sem antes cumprir sua parte do acordo, renunciar de uma vez por todas a presidência da Casa. E aí sim, os senhores "homens bons" da república cumpriram sua parte na farsa.
O parlamento brasileiro é uma grande casa de prostituição, com uma ressalva honrosa: as mulheres e homens que vendem seus corpos por dinheiro, vendem somente os corpos e não a alma.

Grito da Terra, clamor dos povos

Por Frei Betto

Os gregos antigos já haviam percebido: Gaia, a Terra, é um organismo vivo. E dela somos frutos, gerados em 13,7 bilhões de anos de evolução. Porém, nos últimos 200 anos, não soubemos cuidar dela e a transformamos em mercadoria, da qual se procura obter o máximo de lucro.
Hoje, a Terra perdeu 30% de sua capacidade de autorregeneração. Somente através de intervenção humana ela poderá ser recuperada. Nada indica, contudo, que os governantes das nações mais ricas estejam conscientes disso. Tanto que sabotaram a Conferência Ecológica de Copenhague, em dezembro de 2009.
A Terra, que deve possuir alguma forma de inteligência, decidiu expressar seu grito de dor através do vulcão da Islândia, exalando a fumaça tóxica que impediu o tráfego aéreo na Europa Ocidental, causando prejuízo de US$ 1,7 bilhão.
Em reação ao fracasso de Copenhague, Evo Morales, presidente da Bolívia, convocou, para os dias 19 a 23 de abril, a Conferência Mundial dos Povos sobre a Mudança Climática e os Direitos da Mãe Terra. Esperavam-se duas mil pessoas. Chegaram 30 mil, provenientes de 129 países! O sistema hoteleiro da cidade entrou em colapso, muitos tiveram de se abrigar em quartéis.
A Bolívia é um caso singular no cenário mundial. Com 9 milhões de habitantes, é o único país plurinacional, pluricultural e pluriespiritual governado por indígenas. Aymaras e quéchuas têm com a natureza uma relação de alteridade e complementaridade. Olham-na como Pachamama, a Mãe Terra, e o Pai Cosmo.
Líderes indígenas e de movimentos sociais, especialistas em meio ambiente e dirigentes políticos, ao expressar o clamor dos povos, concluíram que a vida no Planeta não tem salvação se perseverar essa mentalidade produtivista-consumista que degrada a natureza. Inútil falar em mudança do clima se não houver mudança de sistema. O capitalismo é ontologicamente incompatível com o equilíbrio ecológico.
Todas as conferências no evento enfatizaram a importância do aprender com os povos indígenas, originários, o sumak kawsay, expressão quéchua que significa “vida em plenitude”. É preciso criar “outros mundos possíveis” onde se possa viver, não motivado pelo mito do progresso infindável, e sim com plena felicidade, em comunhão consigo, com os semelhantes, com a natureza e com Deus.
Hoje, todas as formas de vida no Planeta estão ameaçadas, inclusive a humana (2/3 da população mundial sobrevivem abaixo da linha da pobreza) e a própria Terra. Evitar a antecipação do Apocalipse exige questionar os mitos da modernidade - como mercado, desenvolvimento, Estado uninacional - todos baseados na razão instrumental.
A conferência de Cochabamba decidiu pela criação de um Tribunal Internacional de Justiça Climática, capaz de penalizar governos e empresas vilões, responsáveis pela catástrofe ambiental. Cresce em todo o mundo o número de migrantes por razões climáticas. É preciso, pois, conhecer e combater as causas estruturais do aquecimento global.
Urge desmercantilizar a vida, a água, as florestas, e respeitar os direitos da Mãe Terra, libertando-a da insaciável cobiça do deus Mercado e das razões de Estado (como é o caso da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu).
Os povos originários sempre foram encarados por nós, cara-pálidas, como inimigos do progresso. Ora, é a nossa concepção de desenvolvimento que se opõe a eles, e ignora a sabedoria de quem faz do necessário o suficiente e jamais impede a reprodução das espécies vivas. Temos muito a aprender com aqueles que possuem outros paradigmas, outras formas de conhecimento, respeitam a diversidade de cosmovisões, sabem integrar o humano e a natureza, e praticam a ética da solidariedade.
Cochabamba é, agora, a Capital Ecológica Mundial. Sugeri ao presidente Evo Morales reeditar a conferência, a exemplo do Fórum Social Mundial, porém mantendo-a sempre na Bolívia, onde se desenrola um processo social e político genuíno, singular, em condições de sinalizar alternativas à atual crise da civilização hegemônica. O próximo evento ficou marcado para 2011.
Pena que o governo brasileiro não tenha dado a devida importância ao evento, nem enviado qualquer representante. A exceção foi o deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ), que representou a Câmara dos Deputados.


Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Barros, de O amor fecunda o Universo – ecologia e espiritualidade (Agir), entre outros livros. http://www.freibetto.org