terça-feira, 11 de outubro de 2011

Sampa

Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas


Saímos do Rio de Janeiro inundados por um cansaço diferente, aquele que se sente depois de extenuar algo que deu certo, de parir poesia em festival.
E quando nos demos conta estávamos ali, na Estação da Luz, o mitológico cenário da Paulicéia desvairada. Passamos antes pela caricaturada marginal do Tietê, mas foi na Luz que nos demos conta de que enfim havíamos chegado a São Paulo.
O ônibus andou menos de cinco minutos e encontramos Caetano Veloso na esquina da Ipiranga com a Avenida São João. Nesta altura não restava a menor dúvida: A São Paulo dos edifícios “artos” de Adoniran Barbosa nos recebia.
Partimos para o museu do futebol que fica no Estádio Municipal do Pacaembu. Neste momento a cultura popular se transformou, foi da nostalgia do futebol arte até a mercantilização dos tempos modernos. Vimos símbolos sagrados do velho esporte, quadros épicos de memoráveis partidas. Ouvimos narrações de históricos gols e contemplamos os gritos de torcidas apaixonadas. Cada coração que levamos do Rio pulsou de maneira diferente, mas pulsou nas memórias que carregávamos de clubes que nutrimos como traço inseparável de nossa própria cultura.
Sob a direção de um guia cítrico e bem informado - Diego - num ônibus, e da doce e segura Rafaela no outro, tínhamos a certeza de que seríamos bem direcionados pelas armaduras de concreto daquela cidade.
Partimos para o almoço e parecíamos repetir Chico Buarque:

"Mulher, você vai gostar:
Tô levando uns amigos pra conversar.
Eles vão com uma fome
Que nem me contem;
Eles vão com uma sede de anteontem”.

E para nossa sorte, o restaurante fez jus a nossa fome.
Saímos dali e nos encontramos com nossa língua. Lá estava ela e trazia consigo raízes de 500 anos com histórias de mais de 6.000 anos. E assim voltamos a Caetano Veloso no fantástico Museu da Língua Portuguesa:


“Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
"Minha pátria é minha língua"
Fala Mangueira!”.

É um museu vivo, entre cartazes que se movimentam junto com o público, fazendo ode à palavra e uma exposição temporária do modernista Oswald de Andrade. Aquele museu interage com as pessoas, tornando-as íntimas. Mas foi a projeção de um filme de 10 minutos sobre as origens da Língua Portuguesa falada no Brasil e a Praça da Língua, espécie de “planetário linguístico”, composto por imagens projetadas e áudio, que deu vivacidade àquele encontro de falantes e sua língua. Uma antologia da literatura criada em Língua Portuguesa, com curadoria de José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski.
Banhados de cultura nos restavam banhar o corpo e sair para jantar. Assim fizemos e nos afogamos em massas no tradicional bairro Bexiga.
Ao regressar ao hotel dormimos o sono dos justos e só acordamos para recomeçar. Assim, nosso dia primaveril, no melhor estilo garoa de Sampa, amanheceu no Ibirapuera onde, entre flores e muralistas, decidimos visitar o Memorial da Resistência, um museu de preservação histórica de tempos gris, antigo DOPS – centro nervoso da polícia política das ditaduras, Vargas e militar, onde se torturava, matava-se e sumia-se com os corpos daqueles que ousassem lutar pela liberdade e pela democracia. E assim voltamos a Chico:

Num tempo página infeliz da nossa história,
passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações

Sim, Francisco Buarque de Holanda tem razão. Mas não naquele caso e com aqueles meninos e meninas. Aquela geração que conheceu no Memorial da Resistência não permitiu desbotar nada de suas memórias. Ao contrário, viveu aquele momento com a intensidade de quem estava solidário com as inscrições nas paredes frias; de quem ouvia o tilintar das chaves que abriam e fechavam as celas; de quem sentia por alguns segundos as dores das torturas que parecem não cessar. Ali choramos, contemplamos, nos fitamos, cúmplices, e apontamos para frente, para a necessidade de não permitirmos a repetição dessa velha história.
No ônibus, de volta para algum lugar que, embriagados de emoção, não sabíamos onde era, vimos a reedição de trechos do festival de poesia de dias antes. Os alunos deram seus depoimentos sobre os momentos que viveram, cantaram solenes “Roda Viva” e “Pra não dizer que não falei de flores” e evocaram os poetas sociais que doaram suas artes para a causa dos desfavorecidos, gritando suas presenças com a força daqueles que acreditam num mundo diferente.
Almoçamos. Partimos para um fantástico encontro com nossas raízes continentais. E foi ali, no Memorial da América Latina, que nos reconhecemos. Somos latinos sim. Somos americanos sim. Somos indígenas, negros e brancos e quem mais chegar. Vimos a mão de Oscar Niemayer sangrando nosso mapa e nos despedimos de nossos amigos paulistas. A fala de Diego, num círculo em cima da maquete de nossa América, pregava um país sem preconceitos, sem rivalidades triviais impulsionadas pela grande mídia abutre, ávida por contendas mercenárias, a fim de se vender tudo, inclusive a tolerância. Desse jeito, repletos de aulas sobre São Paulo, aprendemos que aqueles que tripudiam a cultura do outro e cultuam a intolerância e o etnocentrismo, revivem em Caetano Veloso, o mesmo que nos recebeu na esquina, se despede de nós alertando:


Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Canción con todos - Mercedes Sosa

Hoje acordei com saudades de Mercedes Sosa. E me veio de assalto esta música, que evoca a unidade latino americana que ontem pude sentir em breves momentos no Memorial da América Latina em São Paulo. Viva a América Latina livre! Viva os povos da América!

Aproveito esta postagem para lembrar aos imprescindíveis alunos que a professora Catarina publicou no sítio http://cambauba2011.blogspot.com um artigo intitulado "Heróis da Resistência" em homenagem aquela sexta-feira de poesias.