sexta-feira, 28 de julho de 2006

ALCA NÃO! UMA OUTRA AMÉRICA É POSSÍVEL.

A Área de Livre comércio da América tem como discurso “oficial” e ideológico, a tentativa de se firmar uma área comercial que abrangeria as três Américas, tornando-as competitivas em tempos de globalização, onde grandes blocos econômicos são montados para disputar mercados.
Não precisamos de grandes reflexões para imaginar que dentro do continente americano, os EUA capitalizam através de sua hegemonia política e econômica a importância máxima das ações, e que sendo assim, a ALCA seria um realinhamento dos países do continente aos interesses estadunidenses.
A estratégia política dos EUA para a América Latina e o Caribe, tem como principal objetivo manter o controle geopolítico e estruturar um organismo das Américas que legitime a intervenção militar norte-americana, por isso que entregar a base militar de Alcântara, no Maranhão, faz parte deste processo. Lembremos que o Maranhão é o penúltimo Estado brasileiro banhado pelo mar antes da região amazônica, o que o torna um grande portal para os mais obscuros interesses de nossas riquezas, e não tenhamos a inocência de achar que isto não é vender soberania.
Em segundo lugar, os EUA procuram alinhar a política externa dos países latino-americanos com sua política e contam com seu apoio para suas iniciativas nos organismos internacionais ou fora deles. Desta maneira o Consenso de Washington é o grande responsável por definir políticas para a América Latina, África e Ásia ocidentalizada.
E em terceiro lugar, sua estratégia procura manter regimes democráticos, ou não, que garantam a liberdade de ação dos interesses estadunidenses, sabendo que o conceito de democracia para país tão soberbo passa muito mais por instituições burguesas sólidas do que por acabar com a fome, o analfabetismo, a mortalidade infantil, coisas que toda sua empáfia não conseguiu dar respostas convincentes.
É óbvio também que o espírito intervencionista dos EUA, se hoje se encarna na ALCA, no passado já vestiu outras roupagens. Basta viajarmos no tempo e descermos nos anos posteriores da independência dos EUA, quando o Presidente James Monroe lança uma ousada doutrina – Doutrina Monroe – que se “solidariza” com todo movimento de independência de qualquer país da América que desejasse expulsar os “opressores” europeus: “A América para os americanos”. E é aí que William Evarts, secretário de Estado dos EUA (1877 – 1881), em reunião com financistas e dignitários mexicanos em Nova York, lança uma “pérola” que parece antever o futuro, explicando o que seria a tal Doutrina Monroe:

“A América para os americanos. Ora, eu proporia com prazer um aditamento: para os americanos, sim, senhores, entendamo-nos, para os americanos do norte (aplausos). Comecemos pelo nosso caro vizinho, o México, de que já comemos um bocado em 1848. Tomemo-lo (risos). A América central virá depois, abrindo nosso apetite para quando chegar a vez da América do sul. Olhando para o mapa, vemos que aquele continente tem a forma de um presunto. Uncle Sam é bom de garfo; há de devorar o presunto (aplausos e risos demorados). Isto é fatal, isto é apenas questão de tempo”.
Extraído do livro A Ilusão Americana, de Eduardo Prado (1894), que frisava esta “premonição” no maior estilo capitalismo selvagem, zombando com toda possibilidade de aliança ou crédito ou complacência, e ainda acrescentando: “ ... entre gargalhadas dos americanos e sorrisos amarelos dos mexicanos”.

Ah! Se os mexicanos não apenas tivessem sorrido amarelo. Ah! Se desde ali tivéssemos imposto condições. Mas ainda há tempo! Não podemos negociar nossa soberania. Não podemos aceitar mais uma vez passíveis, que escolham nossos caminhos. Não podemos aceitar calados sem indignação que entrem em nossas casas, montem regras, executem essas regras para no final apenas concedermos “sorrisos amarelos”. Não podemos ficar calados mesmo que isto custe sanções, pois será que já não é hora de transformarmos sanções em independência? Será que não estamos mais que atrasados e nesse sentido dar nosso “grito de liberdade” e ao mesmo tempo iniciar nosso próprio parque industrial?
A Área de Livre COLONIALISMO da América é a versão recente da exploração travestida de modernidade e só será concebida se consentirmos com nosso silêncio aterrorizante, e os povos da América devem fazer valer o velho sonho de unidade sim – a Panamérica – mas que esta unidade não seja articulada por outra via que não a do crescimento dos países deste maravilhoso e rico continente com o objetivo de solucionar a fome, a miséria, a preservação cultural, a valorização dos povos indígenas e afro-americanos, a inclusão social e a criação de uma sociedade justa, fraterna e igualitária.

A Hydra

Era assim que eu a via. Uma Hydra. Alusão ao mitológico monstro de duas cabeças que eternizava suas contradições na alegoria bizarra de um corpo sustentando duas personalidades.
Uma cabeça se chamava Olga à outra Camélia. O corpo belíssimo projetava desejos para muito além da análise psico-sociológica e desmentia a versão monstruosa da mitologia original.
Olga era uma revolucionária, cheia de sonhos, nascida num mundo injusto e necessitado do calor de suas teorias e da veemência de suas práticas. Era apaixonante. Suas ações coincidiam com seu estilo de vida. Seus conceitos morais eram reflexos da mulher guerreira que fazia questão de panfletar onde quer que fosse. Era cítrica, mas não amarga. Sua militância extrapolava os dogmas sisudos do velho stalinismo burocrático. A utopia, guardava nas entranhas e visceralmente transpirava o desabrochar de uma sociedade fraterna e igualitária. A mulher que desenhava em sua bandeira não podia aceitar nenhum tipo de sujeição e a luta pela liberdade muitas vezes se confundia com o feminismo deslocado temporalmente dos anos 60, mas não era amazona. Tinha o brilho no olhar das grandes personalidades. Ao falar entoava o canto nobre daqueles que pensam no coletivo e depois em si e isso a tornava sedutora. Era uma pequeno-burguesa. Mas sua consciência de classe residia na operária, que chacoalhava num trem suburbano que entre uma estação e outra se compadecia ante uma criança que vendia seus doces no vagão escondido do guarda, que constrangido fingia não ver o menino e sua explícita pobreza. Não tinha namorado, tinha companheiro. Mostrava a face independente de uma mulher que muitas vezes era distorcido pela figura inócua da rudeza. Mas era agridoce. E o que a movia nesse mundo de paradigmas difusos pós-moderno era o amor. O amor à causa, o amor à vida, o amor ao socialismo. Seus conceitos, formados e consolidados ao longo de trinta anos não admitia uma série de concessões políticas, profissionais, passionais e assim levava a vida essa grande mulher. Corpo esbelto, silhueta delgada, estatura média e coração fragilizado por uma arritmia sem maiores conseqüências, mas que expirava cuidados. Coluna pinçada, dores intermitentes e má vontade para a fisioterapia. Da alma vinha o fogo que movia a racionalidade na direção da utopia e assim, alimentava sua esperança, que alimentava seus projetos, num balé cíclico, que podia durar a vida toda, se necessário fosse, mas não removia dela suas mais sinceras virtudes.
Camélia, a outra cabeça da hydra, repousava no mesmo corpo. Que sustentava ainda um par de olhos que falava tanto quanto sua portadora. Não sabia se fazia uma tatuagem no pescoço ou na panturrilha. Era doce, mas não melosa. Queria colo, cuidados e uma vida estável. Sonhava. Imaginava-se casada e intuía um marido. Queria falar de amor e recitar poesia. Imaginava andar de mãos dadas admirando um crepúsculo e depois deitar na areia para contar as estrelas. Desejava ser mais que uma companheira ou uma companhia, queria falar besteiras e tomar sorvete, comer comida vegetariana ou chinesa e andar trôpega de rir por nada. Abrir uma garrafa de vinho apenas pelo ritual, mesmo que nenhum dos dois a bebesse. Sentar à margem de uma fogueira para afugentar o frio e contar os medos de infância. Lembrar dos desenhos animados e dos personagens que mais marcaram, e rir dos episódios repetidos à exaustão do Tom e Jerry ou do Pica-pau. Rememorar o quanto era cruel o Rin-Tin-Tin que só entrava em ação para caçar os índios da parte norte da nossa América e o quão obeso era o Batman das primeiras séries enlatadas que importávamos. Queria se permitir politicamente incorreta às vezes, para não parecer igual a todo mundo que quer ser diferente. Queria matar o trabalho um dia inteiro para não fazer nada sozinha ou com alguém que quisesse estar. Imaginava ter alguns luxos, que não ferisse a consciência de Olga, mas queria fazê-lo sem dor na própria carne. Era Ibérica, como todo o continente que vivia e evocava seus ícones. Queria acreditar no infinitude do amor, mas insistia em reafirmar para si mesma que tudo acabaria um dia. Imaginava-se feliz. Vivia só, mas não suportava a solidão e muitas vezes a companhia ininterrupta de Olga com seus preceitos racionais. Pensava em si não como um ser estanque da sociedade, mas como um indivíduo com necessidades diferentes das outras pessoas, o que lhe desvendava como singular. Exalava amor e queria ser amada na amplitude que essa palavra exige e com a incondicionalidade daqueles que se imaginam envelhecendo juntos. Era igualmente linda a sua outra metade. Tinha valores morais mais flexíveis e isso era perturbador. Gostava de crianças, embora que por pouco tempo de convivência. Usava óculos. Tinha na face o desenho da pura beleza, aquela que não agride, mas existe. Era frágil, não por ser mulher, mas por ser humana e assim imaginava um afago, um ombro, um beijo. Tinha um grande amor, que suas memórias hão de ruminar e pô-lo em algum lugar de sua história, seja no passado ou no futuro.
Hydra, fera, Frhydra, bela ainda. A fortuna roda, gira como moenda e faz da vida sua natureza de inevitabilidade. No Olimpo, os deuses reunidos resolveram te testar e assim Hera mandou-te um feitiço: “se envolverás com o primeiro ‘bem arrumadinho’ que aparecer e terás que lutar com todas as forças para que uma cabeça não destrua a outra.” Os dados foram jogados e Einstein tinha razão. Olga resolvera o problema com a singeleza de uma análise de conjuntura, pois sabia que tal paixão, geraria encantamento, mas tinha que ser logo cortado, pois mexia com sua moral feminista-revolucionária. Camélia, confirmando as pretensões de Hera, saíra a campo na defesa de uma paixão que deve ser vivida, afinal nossa passagem pela terra é tão breve e os momentos podem se transformar em relações mais consistentes.
Um turbilhão de pensamentos povoa a mente dessa Hydra que oscila entre o céu e o inferno cristão e pede ajuda aos semi-deuses que lhe acompanham em suas crença diárias. Ouve falar nas tentações dos amores frustrados e o feitiço de Hera não passava de uma projeção refletiva de sua relação doente com Zeus, a mando de um ser terreno e possessivo que, num pacto de amor eterno, queria outras aventuras e não permitia isso a mulher-de-duas-cabeças e vários sonhos.
Ícaro lhe emprestou as asas para se sobrepor a esses ardis causados pela incessante disputa de nossas consciências. Falou-lhe sobre os amores e sobre a felicidade. Disse que lá de cima pode se ver o sol e o mar e que suas grandezas representavam a dimensão de que a vida tem sobre nós. Deu-lhe força para seguir viagem e voar bem alto, pois os grandes sonhos residiam nas mais altas nuvens. Assegurou-lhe que sua experiência anterior fez trocar a cera que colava as asas por uma solda, mas que os tombos são sempre o destino da humanidade. Cair é normal, não viver quando se deseja, não.
Tezeu emprestou para a moça um mapa de mil labirintos e falou-lhe que os minotauros não existem mais. As frivolidades dos tempos modernos os transformaram em padrão de beleza com seus corpos definidos e suas cabeças irracionais. Os minotauros se juntaram a Narciso e foram cultuar suas imagens em lojas de ferros delineadores de músculos e músicas estridentemente repetitivas, nada aconselhável para epiléticos.
Vênus, por fim, apenas fitou-a. E naquele olhar gritou que a paixão se transforma em amor e que o amor se transforma em infinito, enquanto dure. E que a duração é tempo e que o tempo é relativo, mas a vida passa num ritmo mais acelerado do que desejávamos, portanto viver é imperativo.

Do Chile para o mundo e o sonho de transformá-lo



A palavra
Pablo Neruda

... Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as ... Amo tanto as palavras ... As inesperadas ... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem ... Vocábulos amados ... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho ... Persigo algumas palavras ... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema ... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas ... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as ... Deixo-as como estalactites em meu poema; como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda ... Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu ... Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que ,se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes ... São antiqüíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada ... Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos ... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas .Américas encrespadas, buscando batatas, butifarras*, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca. mais,se viu no mundo ... Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas... Por onde passavam a terra ficava arrasada... Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras. Como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes... o idioma. Saímos perdendo... Saímos ganhando... Levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo e nos deixaram tudo... Deixaram-nos as palavras.
*Butifarra: espécie de chouriço ou lingüiça feita principalmente na Catalunha, Valência e Baleares. (N. da T.)
Pablo Neruda, pseudônimo de Neftalí Ricardo Reyes Basoalto, nasceu a 12 de julho de 1904, em Parral, no Chile. Prêmio Nobel de Literatura em 1971, sua poesia transpira em sua primeira fase o romantismo extremo de Walt Whitman. Depois vieram a experiência surrealista, influência de André Breton, e uma fase curta bastante hermética. Marxista e revolucionário, cantou as angústias da Espanha de 1936 e a condição dos povos latino-americanos e seus movimentos libertários. Diplomata desde cedo, foi cônsul na Espanha de 1934 a 1938 e no México. Desenvolveu intensa vida pública entre 1921 e 1940, tendo escrito entre outras as seguintes obras: "La canción de la fiesta", "Crepusculario", "Veinte poemas de amor y una canción desesperada", "Tentativa del hombre infinito", "Residencia en la tierra" e "Oda a Stalingrado". Indicado à Presidência da República do Chile, em 1969, renuncia à honra em favor de Salvador Allende. Participa da campanha e, eleito Allende, é nomeado embaixador do Chile na França. Outras obras do autor: "Canto General", "Odas elementales", "La uvas y el viento", "Nuevas odas elementales", "Libro tercero de las odas", "Geografía Infructuosa" e "Memorias (Confieso que he vivido — Memorias)". Morreu a 23 de setembro de 1973 em Santiago do Chile, oito dias após a queda do Governo da Unidade Popular e da morte de Salvador Allende.Com este texto homenageamos o poeta pela passagem de seu 100º aniversário.
Do livro "Confesso que Vivi — Memórias", Difel — Difusão Editorial — Rio de Janeiro, 1978, pág. 51, traduzido por Olga Savary, extraímos o texto acima.