sexta-feira, 28 de julho de 2006

A Hydra

Era assim que eu a via. Uma Hydra. Alusão ao mitológico monstro de duas cabeças que eternizava suas contradições na alegoria bizarra de um corpo sustentando duas personalidades.
Uma cabeça se chamava Olga à outra Camélia. O corpo belíssimo projetava desejos para muito além da análise psico-sociológica e desmentia a versão monstruosa da mitologia original.
Olga era uma revolucionária, cheia de sonhos, nascida num mundo injusto e necessitado do calor de suas teorias e da veemência de suas práticas. Era apaixonante. Suas ações coincidiam com seu estilo de vida. Seus conceitos morais eram reflexos da mulher guerreira que fazia questão de panfletar onde quer que fosse. Era cítrica, mas não amarga. Sua militância extrapolava os dogmas sisudos do velho stalinismo burocrático. A utopia, guardava nas entranhas e visceralmente transpirava o desabrochar de uma sociedade fraterna e igualitária. A mulher que desenhava em sua bandeira não podia aceitar nenhum tipo de sujeição e a luta pela liberdade muitas vezes se confundia com o feminismo deslocado temporalmente dos anos 60, mas não era amazona. Tinha o brilho no olhar das grandes personalidades. Ao falar entoava o canto nobre daqueles que pensam no coletivo e depois em si e isso a tornava sedutora. Era uma pequeno-burguesa. Mas sua consciência de classe residia na operária, que chacoalhava num trem suburbano que entre uma estação e outra se compadecia ante uma criança que vendia seus doces no vagão escondido do guarda, que constrangido fingia não ver o menino e sua explícita pobreza. Não tinha namorado, tinha companheiro. Mostrava a face independente de uma mulher que muitas vezes era distorcido pela figura inócua da rudeza. Mas era agridoce. E o que a movia nesse mundo de paradigmas difusos pós-moderno era o amor. O amor à causa, o amor à vida, o amor ao socialismo. Seus conceitos, formados e consolidados ao longo de trinta anos não admitia uma série de concessões políticas, profissionais, passionais e assim levava a vida essa grande mulher. Corpo esbelto, silhueta delgada, estatura média e coração fragilizado por uma arritmia sem maiores conseqüências, mas que expirava cuidados. Coluna pinçada, dores intermitentes e má vontade para a fisioterapia. Da alma vinha o fogo que movia a racionalidade na direção da utopia e assim, alimentava sua esperança, que alimentava seus projetos, num balé cíclico, que podia durar a vida toda, se necessário fosse, mas não removia dela suas mais sinceras virtudes.
Camélia, a outra cabeça da hydra, repousava no mesmo corpo. Que sustentava ainda um par de olhos que falava tanto quanto sua portadora. Não sabia se fazia uma tatuagem no pescoço ou na panturrilha. Era doce, mas não melosa. Queria colo, cuidados e uma vida estável. Sonhava. Imaginava-se casada e intuía um marido. Queria falar de amor e recitar poesia. Imaginava andar de mãos dadas admirando um crepúsculo e depois deitar na areia para contar as estrelas. Desejava ser mais que uma companheira ou uma companhia, queria falar besteiras e tomar sorvete, comer comida vegetariana ou chinesa e andar trôpega de rir por nada. Abrir uma garrafa de vinho apenas pelo ritual, mesmo que nenhum dos dois a bebesse. Sentar à margem de uma fogueira para afugentar o frio e contar os medos de infância. Lembrar dos desenhos animados e dos personagens que mais marcaram, e rir dos episódios repetidos à exaustão do Tom e Jerry ou do Pica-pau. Rememorar o quanto era cruel o Rin-Tin-Tin que só entrava em ação para caçar os índios da parte norte da nossa América e o quão obeso era o Batman das primeiras séries enlatadas que importávamos. Queria se permitir politicamente incorreta às vezes, para não parecer igual a todo mundo que quer ser diferente. Queria matar o trabalho um dia inteiro para não fazer nada sozinha ou com alguém que quisesse estar. Imaginava ter alguns luxos, que não ferisse a consciência de Olga, mas queria fazê-lo sem dor na própria carne. Era Ibérica, como todo o continente que vivia e evocava seus ícones. Queria acreditar no infinitude do amor, mas insistia em reafirmar para si mesma que tudo acabaria um dia. Imaginava-se feliz. Vivia só, mas não suportava a solidão e muitas vezes a companhia ininterrupta de Olga com seus preceitos racionais. Pensava em si não como um ser estanque da sociedade, mas como um indivíduo com necessidades diferentes das outras pessoas, o que lhe desvendava como singular. Exalava amor e queria ser amada na amplitude que essa palavra exige e com a incondicionalidade daqueles que se imaginam envelhecendo juntos. Era igualmente linda a sua outra metade. Tinha valores morais mais flexíveis e isso era perturbador. Gostava de crianças, embora que por pouco tempo de convivência. Usava óculos. Tinha na face o desenho da pura beleza, aquela que não agride, mas existe. Era frágil, não por ser mulher, mas por ser humana e assim imaginava um afago, um ombro, um beijo. Tinha um grande amor, que suas memórias hão de ruminar e pô-lo em algum lugar de sua história, seja no passado ou no futuro.
Hydra, fera, Frhydra, bela ainda. A fortuna roda, gira como moenda e faz da vida sua natureza de inevitabilidade. No Olimpo, os deuses reunidos resolveram te testar e assim Hera mandou-te um feitiço: “se envolverás com o primeiro ‘bem arrumadinho’ que aparecer e terás que lutar com todas as forças para que uma cabeça não destrua a outra.” Os dados foram jogados e Einstein tinha razão. Olga resolvera o problema com a singeleza de uma análise de conjuntura, pois sabia que tal paixão, geraria encantamento, mas tinha que ser logo cortado, pois mexia com sua moral feminista-revolucionária. Camélia, confirmando as pretensões de Hera, saíra a campo na defesa de uma paixão que deve ser vivida, afinal nossa passagem pela terra é tão breve e os momentos podem se transformar em relações mais consistentes.
Um turbilhão de pensamentos povoa a mente dessa Hydra que oscila entre o céu e o inferno cristão e pede ajuda aos semi-deuses que lhe acompanham em suas crença diárias. Ouve falar nas tentações dos amores frustrados e o feitiço de Hera não passava de uma projeção refletiva de sua relação doente com Zeus, a mando de um ser terreno e possessivo que, num pacto de amor eterno, queria outras aventuras e não permitia isso a mulher-de-duas-cabeças e vários sonhos.
Ícaro lhe emprestou as asas para se sobrepor a esses ardis causados pela incessante disputa de nossas consciências. Falou-lhe sobre os amores e sobre a felicidade. Disse que lá de cima pode se ver o sol e o mar e que suas grandezas representavam a dimensão de que a vida tem sobre nós. Deu-lhe força para seguir viagem e voar bem alto, pois os grandes sonhos residiam nas mais altas nuvens. Assegurou-lhe que sua experiência anterior fez trocar a cera que colava as asas por uma solda, mas que os tombos são sempre o destino da humanidade. Cair é normal, não viver quando se deseja, não.
Tezeu emprestou para a moça um mapa de mil labirintos e falou-lhe que os minotauros não existem mais. As frivolidades dos tempos modernos os transformaram em padrão de beleza com seus corpos definidos e suas cabeças irracionais. Os minotauros se juntaram a Narciso e foram cultuar suas imagens em lojas de ferros delineadores de músculos e músicas estridentemente repetitivas, nada aconselhável para epiléticos.
Vênus, por fim, apenas fitou-a. E naquele olhar gritou que a paixão se transforma em amor e que o amor se transforma em infinito, enquanto dure. E que a duração é tempo e que o tempo é relativo, mas a vida passa num ritmo mais acelerado do que desejávamos, portanto viver é imperativo.

Um comentário:

Wallace Camargo disse...

O texto de vocês é a prova de que a boa palavra escrita vale mais do que mil imagens!