quinta-feira, 10 de agosto de 2006

Até quando?


Eduardo Galeano (*)


Em Canaã, onde Jesus converteu água em vinho para celebrar o amor humano, o ódio humano despedaça mais de 30 crianças num grande bombardeio. A guerra segue indiferente. Como de costume, dizem que foi um erro. Até quando os horrores continuarão sendo chamados de erros? (em espanhol errores, o que dá um sentido mais poético à frase).
Esta guerra, esta carnificina de civis, desencadeou-se a partir do seqüestro de um soldado israelita. Até quando o seqüestro de um soldado israelita poderá justificar o seqüestro da soberania palestina?
Até quando o seqüestro de dois soldados israelenses poderá justificar o seqüestro de todo o Líbano?
A caça aos judeus foi durante séculos o “esporte” favorito dos europeus. Em Auschwitz desembocou um antigo rio de espantos que havia atravessado toda a Europa. Até quando os palestinos e outros árabes seguirão pagando por crimes que não cometeram?
O Hezbollah não existia quando Israel arrasou o Líbano em suas invasões anteriores. Até quando continuaremos acreditando no conto do agressor agredido, que pratica o terrorismo porque tem direito de defender-se do terrorismo?
Iraque, Afeganistão, Palestina, Líbano, até quando poderemos seguir exterminando países impunemente?
As torturas de Abu Ghraib, que despertaram certo mal-estar universal, não têm nada de novo para nós, latino-americanos. Nossos militares aprenderam essas técnicas de interrogatório na Escola das Américas, que agora perdeu seu nome, mas não as suas manhas..
Até quando seguiremos aceitando que a tortura continue sendo legitimada, como o fez a Corte Suprema de Israel, em nome da legítima defesa da pátria?
Israel não deu ouvidos a 46 resoluções da Assembléia Geral da ONU e de vários outros organismos da ONU. Até quando o governo de Israel continuará exercendo o privilégio da surdez?
As Nações Unidas recomendam, mas não decidem. Quando decidem, a Casa Branca impede que decidam, porque tem direito de veto. A Casa Branca tem vetado no Conselho de Segurança quarenta resoluções que condenavam Israel. Até quando as Nações Unidas continuarão atuando como se fossem outro nome dos Estados Unidos?
Desde que os palestinos foram desalojados de suas casas e despojados de suas terras, correu muito sangue. Até quando o sangue continuará correndo para que a força justifique o que o direito nega?
A história se repete, dia após dia, ano após ano e para cada 10 árabes mortos, morre um israelense. Até quando a vida de cada israelense continuará valendo dez vezes mais?
Em proporção à população, os 50 mil civis, em sua maioria mulheres e crianças, mortos no Iraque, equivalem a oitocentos mil estadunidenses. Até quando continuaremos aceitando, como se fosse normal, a matança de iraquianos numa guerra cega que esqueceu os seus pretextos? Até quando continuará sendo normal que os vivos e os mortos sejam de primeira, segunda, terceira ou quarta categoria?
O Irã está desenvolvendo a energia nuclear. Até quando continuaremos acreditando que isso baste para provar que um país é um perigo para a humanidade? À chamada comunidade internacional, não causa angústia o fato de que Israel tenha 250 bombas atômicas, mesmo sendo um país que vive à beira de um ataque de nervos. Quem guia o perigosímetro universal? Teria sido o Irã o país que jogou as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki?
Na era da globalização o direito de pressão pode mais que o direito de expressão. Para justificar a ocupação ilegal de terras palestinas, a guerra se chama paz. Os israelenses são patriotas e os palestinos são terroristas e os terroristas acionam o alarme universal. Até quando os meios de comunicação continuarão sendo medos de comunicação?
A matança atual, que não é a primeira e – temo – não será a última, ocorre em meio ao silêncio. O mundo estará mudo? Até quando continuarão soando em vão as vozes da indignação? Estes bombardeios matam crianças, mais de um terço das vítimas e às vezes mais do que isso, como em Canaã. Quem se atreve a denunciar isso é acusado de anti-semita. Até quando continuaremos sendo anti-semitas ao denunciar os crimes do terrorismo de Estado? Até quando aceitaremos essa extorsão? São anti-semitas os judeus horrorizados pelo que é feito em seu nome? São anti-semitas os árabes, tão semitas como os judeus? Por acaso não há vozes palestinas que defendem a pátria palestina e repudiam o hospício fundamentalista?
Os terroristas se parecem entre si: os terroristas de Estado, respeitáveis homens de governo, e os terroristas privados, que são loucos à solta ou loucos organizados desde os tempos da Guerra Fria contra o totalitarismo comunista. E todos atuam em nome de Deus, chame-se esse Deus Jeová ou Alá. Até quando seguiremos ignorando que todos os terrorismos desprezam a vida humana e que todos se alimentam mutuamente? Não é evidente que nesta guerra entre Israel e o Hezbollah, são os civis, libaneses, palestinos, israelenses, que entram com os mortos? Não é evidente que as guerras do Afeganistão e do Iraque e as invasões de Gaza e do Líbano são incubadoras do ódio, que fabricam fanáticos em série?
SOMOS A ÚNICA ESPÉCIE ANIMAL ESPECIALIZADA NO EXTERMÍNIO MÚTUO. Destinamos 2,5 milhões de dólares, por dia a gastos militares. A miséria e a guerra são filhas do mesmo pai: como alguns deuses cruéis, devora os vivos e os mortos. Até quando continuaremos aceitando que este mundo, apaixonado pela morte, é o nosso único mundo possível?

(*) Escritor e jornalista uruguaio, autor de As Veias Abertas da América Latina

Nenhum comentário: