domingo, 25 de maio de 2008

Diário de campo - Um mergulho no dia-a-dia dos hospitais públicos do Rio de Janeiro - PARTE 1

Este texto foi escrito originalmente em Março de 1996. Porém, sua atualidade é espantosa e tragicamente contemporânea. Isto certamente tem várias explicações sociológicas, mas de uma não devemos fugir: o Prefeito da cidade é o mesmo.

Rio de janeiro, 15 de março de 1996.


Primeiro Diário de Campo - Zona Sul
Visita ao Hospital Municipal Miguel Couto, em 14 de Março.

Nesse dia, aliás o primeiro dia em minha nova experiência, estava eu acompanhado e monitorado da professora Sueli, coordenadora do projeto, ancioso com a projeção que fazia do que estava por vir. Esperava um hospital logo de cara satisfazendo as pequenas informações já recebidas e as impressões de quem até então muito embora não tenha feito uso de uma emergência pública, sempre ficou atento ao compromisso de Instituições governamentais, principalmente no que tange educação e saúde.
Qual não fora minha surpresa, quando logo na entrada nos deparamos com a comitiva oficial municipal, chefiada pelo máximo representante do poder executivo, o prefeito. Sem dúvida a presença de César Maia significava um dia, no mínimo atípico se comparado com a rotina daquele hospital, esbravejado aos quatro cantos do estado como o “melhor embora haja problemas...”. Os bochichos da entrada e as rodas que se formavam, me soavam como prenúncio de que ao menos naquele dia, ou ao menos naquela manhã as coisas por lá andaram maquiadamente melhor.
Driblamos os aglomerados e fomos então fazer o percurso dos pacientes que chegam em condições de se locomover à emergência daquele hospital. De pronto pude observar uma fila na entrada de casos visivelmente deslocados de um atendimento emergente, arrisco dizer que no pouco tempo de observação daquela fila, a maioria absoluta de casos assim se enquadravam, o que resultará sem dúvida em inchaço desse serviço. Porém da mesma forma que assumi arriscar diagnosticar, assim também o faz , na maioria das vezes o primeiro atendimento do hospital, já que a triagem feita nos instantes que ali permanecíamos era por profissionais de segurança, vigilantes, terceirizados. Dali o paciente será atendido de acordo com a gravidade: caso seja alocado em “pequenas emergências” permanece no primeiro andar e aí será indicado de acordo com o tipo de caso, oftalmologia, odontologia,etc. Caso o paciente esteja enquadrado nas “grandes emergências” ele sobe para o segundo andar.
Ao passo que mais e mais informações eram fornecidas pela Sueli e ilustradas pelas circunstâncias, fui apresentado ao percurso daqueles que só chegam ao Miguel Couto em alguma viatura e, como se fosse de propósito, eis que chega um custodioso. Algemado, escoltado e posto numa maca de qualquer maneira, cria assim mesmo um certo alvoroço nos profissionais de saúde e de fato não é para menos, porque se é verdade que tais profissionais não devam fazer qualquer pré-julgamento, também é verdade a possibilidade objetiva de um resgate a trinta ou qualquer coisa parecida. Não o vimos mais.
Subimos à emergência que servirá de laboratório nesta fase da pesquisa. Fui recomendado “respirar fundo e dar uma segurada”, e de fato precisei. De saída entrevistamos um caso de mutilamento por granada e o relato de uma mãe cuja a única razão de permanecer em pé, a mais de 24 horas sem comer, mesmo portando crachá de acompanhante, era sua desenfreada fé evangélica Universal que lhe explicava para àquele fato a luta incessante de Satanás com Jesus Cristo, que culminou na derrota do primeiro, mesmo que tenha levado seu braço. Vale dizer que por menos tempo permanecido ali, mesmo em dia de visita oficial, não foi só esse desleixo com a D. Malvina que saltou aos olhos de tão gritante. Ao irmos entrevistá-la em sala pouco mais reservada que a enfermaria da emergência, somos surpreendidos por uma mulher de mais ou menos 30 anos, sentada de calcinha e sutiã, num sofá da sala da chefia da enfermagem, com sua roupa pressionada ao corpo e toda urinada, chorando muito. Fora um medicamento aplicado minutos antes sem acompanhamento profissional. E para encerrar o dia de intensa multiplicidade de casos concentrado, o relato de uma idosa, D. Alda Vitória, 77, que por mais corriqueiro que nos possa parecer sua internação pelo avançado de sua idade, uma queda no banheiro após banhar-se, não é sequer tragável o fato de estar com a “comadre” cheia pelo tempo que com ela permanecemos - aproximadamente 30 minutos - e outros tantos que ela dizia para mais de hora.
O contraste nas entrevistas ficou claro quando a fizemos com um médico de 22 anos de Miguel Couto, participante de reuniões da Diretoria, que pelas manhãs cobre o “setor” de triagem rendendo os seguranças terceirizados. Aí, o discurso oficial colide com a observação participativa, e é regido pela cartilha do “apesar das dificuldades, este é o único hospital público capacitado ao atendimento...”, que, ao que me parece está intimamente ligado com o afã publicitário de auto promoção do Diretor deste hospital, e do próprio chefe do Executivo.
Todavia, esse relato é fruto de uma primeira visita ao setor de emergência de um dos dois hospitais públicos que estudaremos e claro, pode trazer numa primeira análise, equívoco. O que me pareceu pertubador foi imaginar que mesmo a D. Malvina esperando uma hora e meia para que seu filho fosse atendido depois de penarem em dois hospitais sem atendimento; Mesmo D. Alda aguardando que a limpassem e fosse assim retirado sua “comadre” onde já havia até moscas sob seu cobertor, cuja maior preocupação era se o hospital podia pô-la na rua a qualquer momento; Mesmo vendo um grande contigente de acadêmicos de medicina atendendo os pacientes naquele setor internado, e não os médicos responsáveis; é este Miguel Couto, considerado o melhor hospital da rede pública do Estado do Rio de Janeiro.

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