sexta-feira, 13 de junho de 2008

Diário de campo - Um mergulho no dia-a-dia dos hospitais públicos do Rio de Janeiro - PARTE 4

Um Domingo, uma grávida um descaso...

Rio de janeiro, 12 de junho de 1996.


Diário de Campo III
Observação de Campo no Hospital Municipal Salgado Filho, em 11/06/96


Muito embora tenha ido obstinado a iniciar uma observação, desta vez sem a ajuda do Marcelo ou da Sueli, pegando por ordem os trâmites daqueles que chegam à Emergência do Hospital, fui pela conjuntura lá apresentada, obrigado a iniciar fora da ordem pré-estabelecida. Isto por que, feito um apanhado geral, verifiquei que a fila para atendimento na Emergência, estava pequena, tranqüila e somente de casos clínicos naquela tarde por volta das 13h e 30m. Sendo esta, a primeira estada dos pacientes que buscam atendimento emergente e não encontrando condições propícias, busquei fazer uma reconhecida geral por dentro dos setores que nos dizem respeito: a enfermagem de pediatria estava como da última visita, calma com casos de bronquite, diarréia e outros clínicos. Conversei um tempo com a auxiliar de enfermagem Nildéia, que como se não lembrasse de nossa última conversa ratificou de “negligência” o episódio do atropelamento de uma criança no domingo - já relatado em um diário anterior - e completou dizendo não ser esse um único caso; a internação de pediatria também não merecia atenção específica pois as crianças estavam em repouso e avaliei atrapalhar caso insistisse em interpelar a única enfermeira que lá estava; a sala de sutura estava cheia pois lá havia um caso recém chegado, de um paciente bastante ferido; a radiografia e a tomografia computadorizada estavam funcionando normalmente e a média de tempo de espera era aproximadamente de 20 a 30 minutos, com uma sala de mais ou menos 6 pessoas. O Pronto Socorro (PS) e a Unidade de Politraumatizados (UPT) estavam como sempre, mesmo não presenciando desta vez óbito no PS, e em relação às segundas-feiras, o UPT não estava abarrotado muito embora estivesse lotado.
Nessas andanças de avaliação dos setores de atendimento, fui interpelado enquanto me dirigia à UPT - onde viria a depositar maiores atenções pouco mais tarde - pelo profissional de Segurança Darciney. Este fora interpretado por mim e até discutido com Marcelo, como um dos “responsáveis” não só pelos outros colegas Seguranças, mas como também uma espécie de “chefe triador”, na triagem da fila antes mesmo de chegarem os pacientes a entrar no hospital. No corredor de acessos, a voz firme que indagava os transeuntes, me alcança: “Pois não Senhor? O que deseja?”. Me identifiquei, falei do meu trabalho ali e como que de repente, o tom da voz mesmo que continuasse firme, muda de sonoridade e Darciney se mostra solicito, um ‘gentleman’. Iniciava-se aí o primeiro contato com ele. No meio do corredor com olhares divididos entre seu trabalho e as pessoas do hospital que transitavam, segundo ele curiosos em saber sobre nossa conversa, vacilante no início bem passageiro, apontava com os olhos as pessoas que nos observavam numa quase paranóia, talvez típica do trabalho que realiza.
Falador, pouco à pouco foi se soltando. Desandou a tecer críticas à Saúde Pública, qualificando como “falida”, e afirmando não ser o Salgado Filho uma exceção. Ao entrar no assunto da triagem feita pelos Seguranças antes da triagem médica, dei uma certa volta dizendo que havia escutado algumas queixas neste sentido um dia destes, e creio que isso o credenciou a me responder também em voltas. Afirmou que os pacientes sofriam uma única triagem, a médica. Fui um pouco mais incisivo, e gradativamente inserindo outros assuntos e retornado, ele foi abrindo o jogo: “Fazemos uma triagem sim. E não me sinto capacitado para isso, mesmo sabendo que faço um trabalho melhor do que muitos médicos daqui”. E então porque você faz? perguntei - “Por me preocupar com meus irmãos”, respondeu circulando o dedo indicador pelo quatro cantos do hospital. E por fim, sentenciou: “...e tem mais se faço, é porque o hospital é conivente”, finaliza. Ora, se é fato que esse foi um primeiro contato, é verdade também que suas declarações são pesadas. O que seria mais grave, ter um segurança como primeiro triador àqueles que buscam a Emergência do Salgado Filho, ou ouvir que mesmo esse tipo de profissional trataria melhor os pacientes do que um próprio profissional da Saúde? E sob que aspecto essa “conivência” se apresenta em relação ao Hospital, seria oficiosa ou oficial? São questionamentos que não se encerram aqui, ao contrário, hoje se iniciam. Mas ao menos para mim, profissional de uma outra área, me recai tais declarações como uma explícita revelação de que enquanto uns de nós brincam de fazer Saúde, outros de nós aceitamos passivamente, referendando mais um mosáico da farsa capitalista.
Busquei em seguida contato com as acadêmicas de medicina e bolsistas da Fiocruz, que se encontravam na porta do atendimento de emergência, ou seja, na triagem médica. Relataram que ao menos naquele dia, o atendimento estava razoável, mais que pelo que elas observam, as pessoas serão melhores atendidas, se quem fizer o atendimento for um acadêmico, já que a experiência dos plantões que elas cobrem estava demarcando bem isso. Pedi para identificar um caso a pretexto de se tornar mais claro, e o relato foi igualmente impressionante: Domingo passsado, dia 09/06/96, chegou uma paciente buscando a Emergência, que acabara de parir no carro que a transportava. Para surpresa delas que estavam ali na triagem médica, a médica responsável na hora, uma pediatra, recusou o caso, mandando a mãe procurar um outro hospital ou atendimento. E completou, quando a paciente se resignara juntos dos familiares e resolveu buscar outro atendimento sem ao menos ter cortado o cordão umbilical, “Graças à Deus já foram!”. Será que Darciney, está completamente com a razão?
Por fim travei contato com o Dr. Vitor, na UPT, setor que me dirigia antes de ser abordado pelo Segurança. Médico “intensivista”, é responsável pela revisão de todos os pacientes da UPT em todas as tardes da semana. Atribuiu ao inchaço tanto deste setor como do PS, a desorganização, uma vez que faltam profissionais específicos para o acompanhamento dos casos lá registrados, já que sem acompanhamento, a dinâmica do atendimento é de ir deixando os pacientes ficando, pelo fato de o Hospital ir se perdendo no controle daqueles que devem ir para a UTI, aqueles que devem ir para ambulatórios, para o PS ou a UPT, os que devem ter alta, os que podem ser removidos, etc. Nosso contato foi breve pois senti que se perdurasse, eu o atrapalharia. Mas deu para sentir de sua parte um grande esforço para cooperar conosco com o que tiver ao seu alcance, e talvez seja ele um excelente profissional a ser entrevistado quando estivermos nesta fase.

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