sexta-feira, 13 de junho de 2008

Diário de campo - Um mergulho no dia-a-dia dos hospitais públicos do Rio de Janeiro - PARTE 5

Uma visita ao Inferno!


Rio de Janeiro, 17 de junho de 1996.


Diário de Campo IV.
Observação de Campo no Hospital Municipal Salgado Filho, em 16/06/96.
Horário: entre 17h e 19 horas
Especificidade do dia: UPT, PS, Sutura e Radiologia.



Chegamos ao hospital, eu e Marcelo, como se não tivéssemos por lá pisado antes, afinal era o primeiro fim de semana que cobríamos, e pelo menos eu, não tinha a menor idéia das peculiaridades que encontraríamos.
De princípio, não observei nada de anormal a não ser a abordagem da equipe de acadêmicos de medicina à serviço do projeto, que se queixava insistentemente do profissional de segurança chamado Carlos, que estaria “atrapalhando” o trabalho por eles realizado. A queixa não era vã. O segurança não respeitava o “acordo” tácito feito anteriormente que rezava a permissão da equipe ou na sala de feitura das fichas de entrada dos pacientes ou na recepção de triagem médica, se dirigindo segundo a equipe com extrema grosseria. Fomos até à chefia da emergência do dia e, pelo menos aparentemente, o problema foi contornado.
Após ajudarmos a apagar esse pequeno incêndio, fomos à UPT - Unidade do Politraumatizados, cuja ocupação transbordava à normalidade. Parecia um choupana de guerra daqueles filmes americanos de quinta categoria por mais duro que seja adjetivar assim, e o pior de tudo é que ainda se dava ao luxo de ficar abandonada, pois não vimos mais que um profissional de branco circulando, em um dos ventrículos do coração da Emergência.
Partimos então ao PS, o que nessa altura do campeonato já me representa overdose de adrenalina. Tudo bem que não sou nenhum exemplo de fortaleza no que se refere a hospitais, mais convenhamos... No pronto socorro vimos de aproximadamente 10 leitos, sete idosos, sendo apenas uma maca de causa externa que teria sido operado na ortopedia. Duas coisas nos chamou a atenção: primeiro, o fato de um paciente ter sido operado na ortopedia e estar agora no PS; e, segundo, a constância de idosos neste setor. Foi aí que interpelamos mais um bom contato, a auxiliar de enfermagem Margarida. De pronto, sem nenhuma cerimônia, após a apresentação, já foi nos despejando sua versão sobre o funcionamento tanto do PS quanto da UPT, logo que estimulada: “... a UPT é para os casos de emergência e o PS é o depósito. Eles jogam os pacientes aqui. Se pintar uma vaga, os pacientes sobem, se não, ficam por aqui mesmo”. Ora não quero crer que seja sintomático o fato de termos sempre um número expressivo de idosos, no “depósito”, digo, no PS. Por que assim cresse, teria que admitir a hipótese de ali ser para além de um “depósito”, uma sala de espera para a eternidade. Resolvemos abaixar nossa adrenalina, ou será só a minha? Logo, saímos deste setor. Porém, antes indagamos Margarida à respeito de quatro macas que se encontravam no corredor de acesso a todos os setores da Emergência, e ela nos disse que ali se encontravam por não haver mais espaço na UPT, e na medida que fosse chegando casos graves, iria se retirando os “pacientes mais ou menos estabilizados” e os colocando no corredor.
Passamos então à Radiologia, setor que muito é acionado dado o número de demanda. Contatamos a Dra. Mônica, radiologista especialista em tomografia computadorizada, que ao mesmo tempo se mostrava num misto de reticência com colaboracionismo. Ratificou o que de fato pudemos observar nesse tempo de Campo, o setor funciona bem apesar da grande demanda. “O setor público tem deficiências aqui, ou em qualquer outro hospital. Porém, é a única coisa que essa gente tem”. Quando indagada quanto a manutenção dos aparelhos, ela coloca depender do problema do aparelho para reparo. Deu como exemplo o CT, que estava sem funcionamento por um problema “simples” na maca, e em casos assim, os pacientes eram encaminhados ao Souza Aguiar. Por fim definiu assim o Setor Público: “...equipamentos antigos, falta maqueiros, entretanto os profissionais que trabalham aqui são bons”. Deduzo além do visível quanto ao quadro geral da saúde pública, uma referência clara a equipe da radiologia, sempre aludida por ela na sua fala. Isto para mim, trás no seu interior uma discussão mais profunda sobre as interrelações das equipes que forma o Todo da Emergência no Salgado Filho, e fica mais claro com o passar das entrevistas.
Vejamos então, o caso do acadêmico de medicina Rui, dois meses de Salgado Filho, que trabalha no setor de Suturas. Há mais ou menos 20 casos de suturas por causas externas em cada plantão, começa Rui para logo desfilar conceitos a cerca do serviço público: “faltam recursos materiais como xilocaína, fios, etc. Mas o que me deixa mais P. não é nem isso. É o pessoal da enfermagem, que são muito displicentes quanto o atendimento. Para pegar o material, temos que ir até a enfermeira por conta da burocracia do hospital - para evitar roubo de material... - e quase nunca eles estão lá. São verdadeiros MORCEGOS!”. Mais uma vez, um profissional do hospital toca na tecla de disputa inter equipes. Começo a dar mais atenção quanto a observação feita logo nas primeiras investidas, pela auxiliar de enfermagem importada do Souza Aguiar, Nildéia que sentenciava: “falta calor humano”.
Outro ponto apontado pelo acadêmico, gira em torno do compromisso dos chefes da Emergência, e dos médicos plantonistas, nas trocas dos plantões. Diz Rui que, sempre ( pelo menos nos seus plantões ) mais ou menos 30 minutos antes do fim dos plantões tanto noturno quanto diurno, ninguém mais aparece no PS deixando os casos lá sem atendimento, sem atenção, até a troca de plantão. “... se eu plantonista, entrar ali nesse período de troca sem médico para monitorar, fico doidinho, não temos a menor condição. O PS é um inferno. Um bando de paciente gritando atendimento”. E finaliza dizendo-se “impotente” frente a falta de vagas nos ambulatórios e nos leitos da emergência.

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