sábado, 28 de junho de 2008

Diário de campo - Um mergulho no dia-a-dia dos hospitais públicos do Rio de Janeiro - ÚLTIMA PARTE

Rio de Janeiro, 26 de junho de 1996.
Diário de Campo VI.
Observação de Campo no Hospital Municipal Salgado Filho, em 22/06/96.
Horário: entre 22h e 00 horas
Especificidade do dia: UPT, Pediatria, Radiologia e PS.


Assim que chegamos, eu e Marcelo nos dirigimos para a entrada da Emergência, onde procuramos as acadêmicas de medicina ligadas ao projeto. Nos forneceram uma informação, para mim estarrecedora: não havia ortopedista nem pediatra na Emergência. Os pacientes que chegam com traumas, tiram Rx aqui e vão procurar Ortopedista no Carlos Chagas. É incrível conceber um hospital do porte do Salgado Filho, um dos poucos hospitais que “funcionam” no Estado, cujos casos de traumas são uma constante, não terem ortopedistas. E o pior, na visita que fizemos à Radiologia a Dra. Mônica nos confirmou que há mais de um mês, nos plantões de sábado de madrugada, o HMSF não conta com um Ortopedista. E por incrível que pareça tem mais! A mesma médica confirmou que o hospital chegou a ficar aproximadamente 1 ano sem Ortopedista aos sábados entre 95/96. Nenhuma mente por mais esforço de abstração que faça, consegue conceber algo tão surreal para um hospital como este, logo num sábado.
Após o contato inicial com as acadêmicas, fomos à UPT, onde contabilizamos 7 leitos e duas macas dividindo um espaço que sabemos, cabe desde politraumatizados até a mais virulenta doença. Destes 9 casos, dois eram de Coma total e outros dois, eram de suicídio, fato relativamente “comum” naquele hospital e inteiramente intrigante uma vez visto a raridade de repetições no Miguel Couto de casos assim.
A Internação de Pediatria estava tranqüila, apenas um caso de trauma por queda, do menino Argônio de 11 anos. Porém a auxiliar de enfermagem que nem tempo tivemos de perguntar seu nome, nos disse que “há dias, quando está muito cheio, chega a ficar duas crianças por leito”. E de pronto fomos interrompidos por uma emergência chegada às pressas: um recém nascido sufocado aos braços de um médico, buscando respirador.
Fomos então à Radiologia: a equipe - Dra. Monica (radiologista), Hildebrando e Amélia (técnicos) e Luis Carlos (Câmara escura) - estava reunida pelo baixo movimento naquele início de madrugada. A Dra. Monica, como já mencionei anteriormente, após dizer não ter Ortopedistas aos sábados... foi interrompida pelo Luis Carlos: “Se vier um caso muito grave, será atendido aqui. Caso contrário, não.” Indagamos sobre como o paciente buscaria outro atendimento, se era encaminhado ou se iria por conta própria. Quando a Técnica Amélia revelou conhecer um expediente que os bombeiros utilizam: “Eles ligam para cá a cada troca de plantão para saber sobre as equipes, quais estão completas ou quais estão deficientes. Acho que devem ligar para os demais hospitais também”.
Enfim, engolimos algumas tragadas de saliva, e nos dirigimos ao PS. Como sempre, cheio, insalubre, desleixado e com poucos profissionais de saúde. No “setor” masculino os 12 leitos cheios, e no feminino 15, entre leitos e macas esparsas. Presenciamos uma senhora que sofrera um acidente junino com fogos de artifício. Chegamos ao PS quase ao mesmo tempo que ela, que acompanhada de seu cunhado padeceu em espera, por não constar no Hall dos mais necessitados. É claro que entendo as regras de sobrevivência de um campo de batalha como aquele, onde um paciente politraumatizado por exemplo, tem com justiça prioridades em relação a um aparentemente simples caso com os fogos juninos. Mas convenhamos, a maior dor é aquela que se sente, independente da gravidade. E melhor não seria se ao menos houvesse médicos suficientes? Após algum tempo de espera, a médica responsável dispensou-os, aconselhando procurar o serviço do Hospital do Andaraí, onde muito provavelmente passariam pelos mesmos processos de espera, descaso... e como se não bastasse, outra micro relação os surpreendeu à saída: o maqueiro com uma má vontade expressa, foi puxando a cadeira de rodas que se encontrava a senhora para levá-la até a saída. O cunhado entrou então num bate-boca não permitindo que a cadeira de rodas fosse levada pelo maqueiro, se encarregando ele mesmo de fazê-lo. Naquele caldeirão não é difícil interpretar as diversidades de relações existentes, em que consistem, como se apresentam, o papel dos atores, etc. O difícil, é supor normal dada a atual crise na saúde brasileira.

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